Bases de Dados de Perfis de ADN e o Exame Coactivo

Doc_PDF

A evolução das descobertas científicas não é uma problemática meramente científica, mas cada vez mais, uma problemática jurídica, andando estas, necessariamente, de mãos dadas.

 

Assim, é cada vez mais frequente assistir-se à ligação da genética ao Processo Penal ao nível da investigação criminal, o que levanta vários problemas ético-jurídicos numa sociedade democrática assente na iminente dignidade da Pessoa Humana, como é a nossa (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa).

 

Esta temática é tanto mais notória ao nível da aplicação forense das técnicas de ácido desoxirribonucleico (ADN), nas suas condições de legitimação, obtenção, validação e valoração.

 

Não há dúvida que esta intromissão na esfera do corpo humano do indivíduo contende com uma grande panóplia fundamentais.

 

Esta problemática é tanto mais intrusiva que o legislador se viu obrigado a regulá-la através da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro que entrou em vigor em 14 de Março de 2008 e que aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de investigação criminal.

 

O seu artigo 1º define o seu objecto: “A presente lei estabelece os princípios de criação e manutenção de uma base de dados de perfis de ADN, para fins de identificação, e regula a recolha, tratamento e conservação de amostras de células humanas, a respectiva análise e obtenção de perfis de ADN, a metodologia de comparação de perfis de ADN, extraídos das amostras, bem como o tratamento e conservação da respectiva informação em ficheiro informático.

 

O número 2 deste artigo esclarece que a base de dados serve ainda finalidades de investigação criminal, proibindo o número 3 a sua utilização para fins diversos.

 

Princípios gerais aplicáveis à criação de uma base de dados de perfis de ADN:

 

d        Principio da universalidade restrito e gradual (art. 3º n.º1)
d        Principio da transparência, do respeito da intimidade da vida privada e principio da autodeterminação informacional (art. 3º n.º2)
d        Principio da legalidade, principio da autenticidade, veracidade, univocidade e segurança dos elementos identificativos.
d        Principio da subsidiariedade ou complementaridade da prova obtida mediante perfis de ADN (natureza indiciária ou complementar desta prova – art. 3º n.º4)
d        Principio da vinculação às finalidades de identificação ou de investigação criminal restringida às finalidades do artigo 4º – identificação civil e investigação criminal.

 

As perícias podem ser levadas a cabo por duas entidades (artigo 5º):

 

– Laboratório de policia cientifica da Policia Judiciária e

– Instituto nacional de Medicina Legal.

 

Existe também o dever de informação do modo de recolha (artigo 9º) e o princípio da preferência pelo método não invasivo e não ofensivo da dignidade humana e integridade física e moral.

 

De acordo com o plasmado no artigo 8º a recolha será efectuada:

 

ü  A pedido do arguido;

ü  Ordenada oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do artigo 172º CPP;

ü  Ordenada supletiva e obrigatoriamente, mediante despacho do juiz de julgamento e após trânsito em julgado, de condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a três anos.

ü  No caso de inimputabilidade e ao arguido que seja aplicada uma medida de segurança, mediante despacho do juiz de julgamento.

 

Em todos os casos implica sempre a entrega de documento onde conste a identificação do processo e a identificação dos direitos e deveres decorrentes da Lei 5/2008, nomeadamente, do seu artigo 9º, implicando o seu não cumprimento uma não valoração em sede de julgamento.

 

A análise (ou perícia) restringe-se apenas àqueles marcadores de ADN que sejam absolutamente necessários à identificação do seu titular, tendo este como garantias de defesa: direito à contra análise em consonância com o principio do contraditório e principio de igualdade de armas entre a defesa e a acusação (11º n.º1).

 

São assim, requisitos legais de admissibilidade das perícias de ADN no processo penal português:

 

  1. Existência de um fim constitucionalmente legitimo (ex: investigação criminal);
  2. Respeito pelo princípio da legalidade (há que haver previsão legal especifica);
  3. Jurisdicionalização da medida (necessidade de autorização pelo juiz);
  4. Imprescindibilidade da motivação;
  5. Principio da proporcionalidade (idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito);
  6. Intervenção de pessoal sanitário e respeito pela dignidade da pessoa, evitando-se formas humilhantes ou vexatórias.

 

 

Mesmo após o surgimento da Lei 5/2008 se coloca o problema da realização coactiva de tais perícias. Levantam-se sérias reticências na admissão da compreensão que entende que o juiz pode decretar coactivamente e contra a vontade do arguido a colheita de vestígios biológicos humanos para a fixação de perfis de ADN – entendemos que continua a não ser constitucionalmente comportado, e traduzindo-se qualquer coacção ou violência sobre o individuo para a realização de tais exames como consubstanciando um método proibido de prova, não podendo este ser valorado.

 

 

 

 

 

Mais contende com o estatuto processual do arguido já que a recusa a submissão de tal perícia é uma decorrência do principio da não incriminação, do direito ao silêncio e ao principio da presunção da inocência do artigo 32º n.º2.

 

Ou seja, é legítima a recolha com consentimento do lesado mas continua sem ser claro se o JIC pode ou não obrigar o arguido a submeter-se a tal recolha.

 

O legislador português, com a lei 5/2008 não pretendeu legitimar a recolha coactiva, contra a vontade do visado, de elementos biológicos, com vista a posterior perícia de ADN. Também não há explicação sobre o que se deve entender por “compelir”.

 

O artigo 126º n.º 3 do CPP proíbe a prova obtida através de ofensas corporais, entendendo o legislador que existem determinados valores que se sobrepõem à realização da justiça material processual penal.

 

Não é, assim, exigível que alguém não possa eximir-se em nome do seu irrenunciável direito de defesa, presunção de inocência ou proibição de auto-incriminação.

 

De igual modo não existe qualquer disposição legal a cominar, no caso de recusa de intervenção corporal, tal facto com pena de desobediência simples (348º n.º 1 alínea a) Código Penal) ou qualificada, nem se vê que a autoridade ou o funcionário possam efectuar tal cominação à luz do paradigma da ponderação constitucional e penal.

 

Mais se entende, à luz do n.º2 do artigo 32º da CRP, que a falta de colaboração do arguido não poderá ser contra este valorada, não se coadunando o ónus da prova com a existência da presunção de inocência. Tem, de igual forma, o arguido o direito ao silêncio nos termos dos artigos 61º n.º1 alínea d) e 61º n.º3 alínea b) do CPP.

 

Assim podemos concluir que:

 

  1. Inexiste dever legal de sujeição a intervenção corporal;
  2. Inexiste qualquer ónus probatório sobre o sujeito;
  3. Inexiste qualquer sanção legal para a não colaboração ao nível da intervenção corporal por parte do arguido;
  4. Inexiste dispositivo legal que permita a coacção física com vista à obtenção de matéria biológica humana in vitro para efeitos de determinação de perfis de ADN.

 

E, mesmo sendo ordenada a referida recolha de amostras também em condenados por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a três anos, ainda que esta tenha sido substituída, a verdade é que até Dezembro de 2009 esta base de dados não dispunha de qualquer entrada…

 

Dra. Ália Montenegro Costa

Advogada